Se o telefone tocasse outra vez

De volta à Ilha, noites perdidas, sono à distância

23 Novembro 2019 | Sábado 17h13

Alta madrugada, o telefone me acordou. No outro lado, a voz cansada, empastada pelo álcool. "Deu, cara. Deu!"
 
Era o amigo da adolescência, há anos residindo em Floripa, agastado por um divórcio que não assimilara, abandonado pelo sono.
 
Referência no fotojornalismo catarinense,  Riva ou 
Rivaldo de Souza redigiu seu currículo com uma paixão e sensibilidade rarefeitas nos dias atuais.
 
A obsessão pela luz natural, pelo real quando não inusitado e por tirar da máquina o que ela podia lhe dar, um baita legado.

Desperto pelo tom de despedida, me impus de maneira clara e altiva.

"Joga uma água na cara. Chama um táxi. Vai pra rodoviária e pega o primeiro ônibus pra Criciúma. Vou te esperar. Fica uns dias aqui em casa."
 
Para a minha surpresa, fez o que pedi. Após alguns dias sem beber, o sono recuperado, retornou à Capital. Tinha cargo de destaque na Secretaria de Comunicação do Governo do Estado.
 
Passados três meses, o telefone tocou de novo na madrugada. Agora, a depressão rendera-se à ira.
 
"Seu FDP. Vai tomar no *! Na outra vez, tu me enrolaste, mas agora deu. E não finge que tá dormindo. Deu, cara!!!"

Repeti o "água na cara, táxi, rodoviária, ônibus para Criciúma" e minha assertividade novamente funcionou.
 
Apesar da instabilidade emocional, restara-lhe algo próximo à ponderação ao menos na política. Vivíamos o turbulento 1989 da nossa primeira eleição presidencial e entre Collor, Brizola e Lula, ele recomendava Mário Covas.
 
Em poucos dias, permitiu-se resignação e vontade de recomeçar. Na despedida à porta do ônibus, o abraço e o pedido para que me ligasse sempre. Não importava a hora.
 
De volta à Ilha, infelizmente, reencontrou-se com as noites perdidas, o sono à distância. Aos 34 anos, abreviou a vida na manhã de 24 de novembro, uma sexta-feira. Recebi a notícia na sucursal do Diário Catarinense pouco antes do meio-dia.
 
Aturdido, sem chão nem ar, ouvi de uma colega a pergunta.
 
"Como é mesmo o nome do teu amigo?" Identifiquei. "Ele te ligou ainda há pouco. Tu tinhas ido fazer um lanche no bar. Pediu pra ligar quando tu voltasse. Me desculpa. Esqueci de te falar."
 
Desculpei, óbvio. Como ela poderia imaginar?
 
Já eu segui prisioneiro de ilações, refém nesses 30 anos de perguntas sem respostas e de uma ânsia infatigável. A de que o telefone bem que poderia ter tocado outra vez. Só mais uma vez.

 
Imagens / acervos de Marco Cézar (cortesia) e Nei Manique
 
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