Luzia

Companheira, empresária, mãe e avó

09 Julho 2023 | Domingo 19h14

Quem viu The Post (2017), dirigido por Steven Spielberg e com Meryl Streep e Tom Hanks na primeira fila, entendeu o significado de "têmpera". Na pele da atriz, a empresária Kay Graham, viúva do dono do renomado Washington Post no início dos anos 70 - sim, o filme baseia-se numa narrativa real - enfrenta governantes e juízes.
 Divulgação
O plano de fundo é a guerra no Vietnam. Os argumentos traçam uma perigosa linha divisória entre o direito constitucional à informação e a sempre austera segurança nacional. 

O alto comando da redação do Post, desnecessário dizer, é 100% masculino, o que torna a viuvez precoce e a inexperiência de Kay alvo de descrenças.
 
Luzia e Jurecy / Arquivo familiarNesse mesmo período, o experiente gráfico Jurecy Martins trocou o emprego seguro num semanário de Criciúma pela vontade de fundar outro.

O Independente, acanhado veículo ainda tipográfico, mas com gás pela boca, atraiu rubricas locais memoráveis, como as de Darciony Silva, Paulo de Lima e Nélson Spillere.
 
Em outubro de 1977 e também precocemente, Jurecy faleceu. Mãe de quatro crianças, a viúva Luzia arremangou e administrou um resiliente Independente até a década seguinte.

Em 1979, desempregado e numa fase turbulenta de minha vida, ela me acolheu. Varei noites com seu mano Dutra na Rua Anita Garibaldi pinçando "tipos" para manchetes.
 
Quando um vereador de um município no sul do estado falou mal do jornal, Luzia chorou. Sentiu-se ofendida na memória sua e de Jurecy. Publiquei um editorial e peguei pesado. Na semana seguinte, uma sessão solene da Câmara daquela cidade escalonou pedidos de desculpas, elogios ao Independente e odes à liberdade de imprensa.
 
Meses depois, o Correio do Sudeste - único diário no sul do estado - me acenou com proposta salarial irrecusável. "Vai", me disse ela. "Tu tens muito que crescer e não vai ser aqui." O passe livre não tinha sotaque materno. Era de irmã mais velha. Fui, mas com Luzia no coração.
 
Uma pena não tê-la reencontrado ao longo dessas décadas para lhe dizer isso. Na última quinta, aos 79 anos, Luzia Machado Martins faleceu. Não achei uma linha a respeito em blogs e portais de notícias, o que é compreensível. Luzia viveu numa época em que mulheres falavam e se faziam ouvir, sem que precisassem ser "empoderadas".
 
Na selva midiática que fatalidade e destino a jogaram, criou, educou e nos legou Elaine, Sandra, Edson, Edmilson e Eliane, além de oito netos e netas, o vereador de Criciúma e jornalista Nícola Martins no grupo.
 

Luzia com filhas e filhos, netas e netos

Também numa época em que se fala tanto em "omão" disso, "omão" daquilo, Luzia nunca quis ser "mulherão" de qualquer coisa.

Foi apenas esposa, companheira, empresária, mãe, avó. E, mais do que tudo e acima de qualquer rótulo, uma mulher de têmpera. Ponto.
 
CONTATO BLOG
neimanique1956@gmail.com