Entre a ética e o esquecimento
Direito autoral passa batido por jornalistas
12 Setembro 2021 | Domingo 16h47
Em 2020, o jornalista Carlos Stegemann me ligou de Floripa. Ele finalizava um livro sobre os 40 anos da Associação Catarinense de Emissoras de Rádio e Televisão e queria contatar familiares do fotojornalista Ezequiel dos Passos, morto em janeiro de 1990.
Carlão - como conhecido nas redações de outrora e entre lideranças empresariais catarinenses de hoje - necessitava da autorização de algum herdeiro para a publicação de uma fotografia. No foco, a boca da mina de Santana após a explosão de 1984.
Do filho Samuel, obtive o OK por escrito e um emocionado agradecimento pela lembrança da obra de seu pai. O livro "Acaert 40 anos - A memória de quem viveu a história" viralizou em poucos dias e ocupa a estante de dezenas de jornalistas, radialistas e empresários da comunicação.
A iniciativa de Carlão me impressionou pelo seu zelo com o direito autoral, uma preocupação rara nos dias atuais entre jornalistas. Prova disso é o desprezo renovado a cada 10 de setembro, quando a tragédia da mina de carvão é resgatada e a ética profissional escanteada.
Jornais, sites e TVs deitam e rolam em cima do estressante trabalho de colegas. Os créditos aparecem metamorfoseados como "arquivo histórico", "acervo de biblioteca" ou uma intangível "divulgação". Como se algoritmos e drones tivessem produzido textos e fotos.
Só quem esteve lá sabe o quanto foi difícil cobrir Santana. No cercadinho improvisado diante do pequeno necrotério do hospital de Urussanga para agilizar a identificação dos corpos, jornalistas foram mantidos à distância por policiais.
Até que surgiu a figura impoluta do padre Agenor Neves Marques. Erguendo a fita que demarcava o reservado, ordenou: "Entrem todos! Fotografem tudo e mostrem ao mundo o que aconteceu aqui." As fotos de Ezequiel mostraram e seguem mostrando ano após ano. Pena que sem o merecido crédito.
Dois dias após os sepultamentos, ele e eu retornamos à comunidade para conferir a situação de 24 viúvas e 57 órfãos. Na primeira casa em que paramos, fomos hostilizados - queríamos "vender jornais" - e reagi: "Se vocês não conversarem com a gente, em breve teremos outra Santana."
Sem erguer os olhos, a moradora abriu o portãozinho e na edição de domingo preambulei meu texto com versos de Mulheres de Atenas, de Chico Buarque & Augusto Boal. "As jovens viúvas marcadas e as gestantes abandonadas não fazem cenas etc."
Aos 65 anos, gostaria de manter Santana quieta em minhas lembranças. Os resgates a cada setembro, contudo, fulminam as chances de serenidade. Quando jornalistas desprezam o direito autoral de seus pares, nossa profissão parece casa sem dono, terra de ninguém.
Colegas podem alegar - e alegarão - a correria no dia a dia das pautas e dificuldades para obter a informação precisa, mas - como rezavam os antigos - quem procura, acha. Basta buscar os jornais da época e apurar quem escreveu e quem fotografou.
É como se insistissem - contrariando Carlão e o título de seu livro - em excluir da memória aqueles que viveram e escreveram a história. Não que me preocupe tanto a forma como seremos lembrados lá na frente. O que me assusta é perceber o quanto já somos esquecidos hoje.
Imagens: Ezequiel dos Passos (in memoriam) / Jornal O Estado (sucursal Criciúma)
CONTATO BLOG
neimanique1956@gmail.com
Carlão - como conhecido nas redações de outrora e entre lideranças empresariais catarinenses de hoje - necessitava da autorização de algum herdeiro para a publicação de uma fotografia. No foco, a boca da mina de Santana após a explosão de 1984.
Do filho Samuel, obtive o OK por escrito e um emocionado agradecimento pela lembrança da obra de seu pai. O livro "Acaert 40 anos - A memória de quem viveu a história" viralizou em poucos dias e ocupa a estante de dezenas de jornalistas, radialistas e empresários da comunicação.
A iniciativa de Carlão me impressionou pelo seu zelo com o direito autoral, uma preocupação rara nos dias atuais entre jornalistas. Prova disso é o desprezo renovado a cada 10 de setembro, quando a tragédia da mina de carvão é resgatada e a ética profissional escanteada.
Jornais, sites e TVs deitam e rolam em cima do estressante trabalho de colegas. Os créditos aparecem metamorfoseados como "arquivo histórico", "acervo de biblioteca" ou uma intangível "divulgação". Como se algoritmos e drones tivessem produzido textos e fotos.
Só quem esteve lá sabe o quanto foi difícil cobrir Santana. No cercadinho improvisado diante do pequeno necrotério do hospital de Urussanga para agilizar a identificação dos corpos, jornalistas foram mantidos à distância por policiais.
Até que surgiu a figura impoluta do padre Agenor Neves Marques. Erguendo a fita que demarcava o reservado, ordenou: "Entrem todos! Fotografem tudo e mostrem ao mundo o que aconteceu aqui." As fotos de Ezequiel mostraram e seguem mostrando ano após ano. Pena que sem o merecido crédito.
Dois dias após os sepultamentos, ele e eu retornamos à comunidade para conferir a situação de 24 viúvas e 57 órfãos. Na primeira casa em que paramos, fomos hostilizados - queríamos "vender jornais" - e reagi: "Se vocês não conversarem com a gente, em breve teremos outra Santana."
Sem erguer os olhos, a moradora abriu o portãozinho e na edição de domingo preambulei meu texto com versos de Mulheres de Atenas, de Chico Buarque & Augusto Boal. "As jovens viúvas marcadas e as gestantes abandonadas não fazem cenas etc."
Aos 65 anos, gostaria de manter Santana quieta em minhas lembranças. Os resgates a cada setembro, contudo, fulminam as chances de serenidade. Quando jornalistas desprezam o direito autoral de seus pares, nossa profissão parece casa sem dono, terra de ninguém.
Colegas podem alegar - e alegarão - a correria no dia a dia das pautas e dificuldades para obter a informação precisa, mas - como rezavam os antigos - quem procura, acha. Basta buscar os jornais da época e apurar quem escreveu e quem fotografou.
É como se insistissem - contrariando Carlão e o título de seu livro - em excluir da memória aqueles que viveram e escreveram a história. Não que me preocupe tanto a forma como seremos lembrados lá na frente. O que me assusta é perceber o quanto já somos esquecidos hoje.
Imagens: Ezequiel dos Passos (in memoriam) / Jornal O Estado (sucursal Criciúma)
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